“A resistência tem muitas faces. Ora propõe a recuperação do sentido comunitário perdido (poesia mítica, poesia da natureza); ora a melodia dos afetos em plena defensiva (lirismo de confissão, que data, pelo menos, da prosa ardente de Rousseau); ora a crítica direta ou velada da desordem estabelecida (vertente da sátira, da paródia, do epos revolucionário, da utopia). (BOSI, 1977, 144-5) ”
Assim, ela nem sempre diz respeito a atos violentos (apesar de um governo ditatorial tratar a arte como uma violência a eles). Pensando nisso, me veio a pergunta: Qual a importância das palavras poéticas em períodos difíceis? Onde elas estavam? Existiram? É a partir dessas perguntas que aqui nesse espaço pretendo explorar as denúncias escritas em forma de rimas durante o período ditatorial e expandir a visão para mais essa forma de resistência.
Como se resiste através de palavras? Bosi nos lembra que a resistência tem várias faces e, a poesia é uma das faces nem sempre lembradas, mas, que foram utilizadas, por ambas as partes, quem a favor e quem era contra a ditadura, nesse espaço, falarei da resistência acreditando que resistir é muito mais difícil que ceder.
“Era por volta do meio-dia de 03/12/1979 e, como de costume, o centro de São Paulo estava apinhado de pessoas apressadas com seus afazeres cotidianos. Eis que, inesperadamente, quatro jovens sobem ao 43° andar do tradicional edifício Itália, e despejam quarenta mil folhetos com poemas sobre a cidade da garoa: “Chove poesia no centro de São Paulo” é a notícia dos jornais paulistas no dia seguinte. Era mais uma ação do grupo Poetasia, era mais uma manifestação da poesia contracultural. ” (Santos, 2008.)
A partir disso, podemos perceber com clareza a forma como a poesia atuou na resistência e, inclusive, sua presença no cotidiano. Algo que considero importante ser lembrado é o fato de que a repressão não era o único fato a ser resistido, como bem descreve Jutgla na seguinte passagem:
“Ademais, as ações dos poetas marginais (publicações artesanais, venda de mão em mão, grupos literários, revistas alternativas, happenings, performances, mostras, exposições, debates, etc) não são realizadas com intenções exclusivas de crítica à Ditadura Militar, mas à situação social e econômica do país, à cultura conservadora, ao capitalismo, às modas (incluídas as literárias), às gerações anteriores de poetas, dentre outras motivações”.
Vemos, portanto, que, enquanto uma parcela da população era torturada, outros problemas, agravados pela modernização do país, como a fome, por exemplo, não haviam deixado de existir, e, parte disso, foi a poesia que fez questão de lembrar. Os poemas a seguir, ambos de CACASO, um dos integrantes mais conhecidos do movimento, falam claramente sobre essa situação, a sensação de violência e a existência de algo sádico, passados em forma de riso no segundo poema são de extrema importância para se fazer entender a época.
“No poema, o poeta refere-se à exploração a qual a população é submetida pelo governo. O autor avalia que o milagre econômico foi falho, e isso trouxe consequências negativas para a população, pois a água não virou vinho, e sim vinagre, ou seja, o sabor que deveria ser agradável tornou-se azedo. ”
Meu coração
de mil e novecentos e setenta e dois
já não palpita fagueiro
sabe que há morcegos de pesadas olheiras
que há cabras malignas
que há cardumes de hienas infiltradas
no vão da unha na alma
um porco belicoso de radar
e que sangra e ri
e que sangra e ri
a vida anoitece provisória
centuriões sentinelas
do Oiapoque ao Chuí.
CACASO.
“A dicotomia que enforma o título estrutura o poema. E nele temos um conjunto de imagens que refletem um ambiente de terror, recriando, no plano da imaginação, as atrocidades do plano da realidade, e, ao mesmo tempo, uma entoação que recorda a poesia mais soturna do Romantismo. A melancolia do tom se deve aos eventos que norteiam Logia e mitologia, a saber, a situação histórica que lhe serve de matéria-prima, o regime militar”
Caracterizados como
“(...) uma “geração mimeógrafo”, de uma poesia pobre, que se vale de meios os mais artesanais e improvisados de difusão, num âmbito necessariamente restrito. Há também o esquema de “consórcios”, que busca reproduzir no campo editorial o mecanismo já testado com sucesso na venda de bens duráveis de consumo. Ao lado disso começam a proliferar os planos mais variados de produção independente. Lentamente vai se criando em nossos principais centros urbanos uma espécie de circuito semi-marginal de edição e distribuição, o que é certamente uma resposta política ao conjunto de adversidades reinantes. (1974, 81)” Jutgla, 2013.
Podemos ainda nos ater à interpretação de essas poesias de resistência funcionarem como um tipo de narrativa histórica, de visões individuais, pessoas comuns, em seu absoluto anonimato, porém, ao mesmo tempo, atuando de forma coletiva. É, portanto, magnifico, vermos “ Gente comum, escrevendo sobre situações do dia-a-dia; poetas vivos – e com pressa de serem ouvidos”.
Por fim, de forma breve, lembrando do que diz respeito à participação das mulheres na área, é de extrema importância pensarmos onde elas estavam, visto que, durante a pesquisa, encontrei alguns poemas escritos unicamente por uma única mulher sendo que, muitas delas, eram intelectuais, como bem retrata Maria Moraes na citação a seguir, se referindo especificamente a literatura, mas, podemos dizer que vale para o campo da poesia também ” (...) Muitas das que sobreviveram à tortura e à prisão são jornalistas, professoras universitárias e intelectuais acostumadas a escrever. No entanto, quarenta anos após, poucos são os livros em que as mulheres são o sujeito do discurso (Moraes, 2006, p. 8). ”
Assim, que quando pensarmos em poesia, que pensemos nela também como depoimento histórico de uma época. Termino por fim com o seguinte depoimento de Gullar:
“Esse estado de crescente insegurança me preocupava. Sentia-me encurralado: com o passaporte cancelado pelo Itamarati, estava impedido de ir para qualquer outro país senão aqueles que faziam fronteira com o Brasil. Mas exatamente esses eram dominados por ditaduras ferozes, aliadas da ditadura brasileira. Para aumentar a preocupação, surgiram rumores de que exilados brasileiros estavam sendo sequestrados em Buenos Aires e levados para o Brasil, com a ajuda da polícia argentina. Achei que era chegada a hora de tentar expressar num poema tudo que eu ainda necessitava expressar, antes que fosse tarde demais – o poema final. Quando essa ideia despontou na minha cabeça, esqueci tudo o mais e entreguei-me a ela. Imaginei que o melhor caminho para realizar o poema era vomitar de uma só vez, sem ordem lógica ou sintática, todo o meu passado, tudo o que vivera, como homem e como escritor. Posto para fora esse magma, extrairia dele, depois, os temas com que construiria o poema. Tão excitado fiquei, a cabeça a mil, que só muito tarde logrei adormecer. Na manhã seguinte, mal despertei, sentei-me à máquina de escrever: era a hora de vomitar a vida. Sim, mas como? Fiquei ali paralisado. Se a linguagem tivesse garganta, meteria o dedo nela e provocaria o vômito verbal... Desapontado, me levantei e fui preparar um café, repetindo para mim mesmo: “o poema vai ter que sair, custe o que custar! [...] Hoje, ao refletir sobre aqueles momentos, estou certo de que o poema me salvou: quando a vida parecia não ter sentido e todas as perspectivas estavam fechadas, inventei, através dele, um outro destino” (GULLAR, 1998, 237-8)” Em Jutgla, 2013.
REFERÊNCIAS:
ALBEIRICE, Pedro; Notas sobre poesia, ditadura e Escola; Revista Anthesis: V. 6, N. 11, (Jan. – jul.), 2018.
MARTIN, Carlos; Noite profunda, esperança rasa; Em: revista ieb n50 2010 set./mar. p. 129-142
SANTOS, Tiago; Lira Pau-Brasília: Entre fardas e superquadras: poesia, contracultura e ditadura na Capital (1968 – 1981), 2008; Em: repositório.unb.br.
JUTGLA, Cristiano; A poesia de Resistência à Ditadura Militar: Um estudo de suas configurações; Em: Fólio – Revista de Letras Vitória da Conquista v. 5, n. 1 p. 27-47 jan./jun. 2013
Imagens: https://agenciauva.net/2018/05/04/poesia-marginal-ironiza-o-governo-e-sofre-com-o-ai-5/
Escrito por Sarah Alves, estudante de História.
Comments