Partindo do objetivo do projeto Memória e Ditadura nas Escolas Públicas do Distrito Federal de questionarmos as narrativas estabelecidas a respeito da Ditadura Militar pela chamada historiografia tradicional através de atividades realizadas entre professores e alunos, surgiu esta coluna, como forma de resgate e apresentação de temas que dialoguem com essa problemática.
Resgatando diversas formas de expressão artística, política, e de existências presentes durante a Ditadura Militar, e problematizando os processos de censura que ocorreram durante a época, ameaçando, oprimindo e inviabilizando de forma agressiva essas expressões, buscamos trazer uma perspectiva que complemente a historiografia tradicional, não nos baseando apenas em decretos e documentos, mas também nas manifestações da época.
Aqui, começamos nossa coluna, trazendo o tema das músicas que foram censuradas pela Ditadura, e vos convidamos a refletir sobre os conteúdos de cada música, suas mensagens, e também os motivos pelos quais elas foram censuradas, assim como o caráter do Regime que as censurou.
Quando pensamos que as expressões artísticas representam parte do exercício de liberdade de expressão, não é difícil entendermos como a censura a essas expressões passar a ser uma violação desse direito, e, portanto, uma violação direta a Declaração Universal dos Direitos Humanos, existente desde 1948.
Logo, um sistema político que vai contra um princípio básico dos Direitos Humanos mostra, desde então, quais são suas intenções com o povo que governa. As consequências disso são notadas na educação e no comportamento da população como um todo, pois o poder de decisão é representado através de seleções controladas por instâncias governamentais.
Através de nossas fontes vemos como esse processo acontecia, e quais motivos a Ditadura usava para silenciar as vozes opostas. Primeiramente, ao analisarmos a canção “Tiro ao Álvaro” de Adoniran Barbosa, percebemos que a censura não acontecia apenas por motivos políticos, uma vez que essa canção foi censurada por ir contra determinados parâmetros da censura que diziam respeito a erros gramaticais.
Segundo pesquisadores da língua portuguesa, o sambista estava utilizando um recurso poético chamado de coloquialidade, utilizado desde os modernistas do início do século e que busca aproximar a letra da música à fala popular.
No entanto, os censores categorizaram os termos “táuba” “artomorve” e “revórve” como “erros”, e declararam que a música apresentava “falta de gosto” e que não poderia ser liberada.
Já canções como “Alegria, Alegria” de Caetano Veloso, e “Nós, essa criança” de Taiguara, a censura aconteceu por motivos muito mais ideológicos e políticos, uma vez que essas eram as mensagens das músicas.
No caso de Caetano, criticando o abuso de poder, a violência e as más condições do contexto educacional e cultural estabelecidos pelos militares, além de fazer crítica, também, à crescente cultura estrangeira, fazendo referências a Brigitte Bardot, à atriz ítalo-americana Claudia Cardinale, e a Coca-Cola. Além disso, a música “Alegria, Alegria” valorizava aspectos irônicos, a rebeldia e o anarquismo a partir de fragmentos do dia a dia.
A música de Taiguara foi vetada sob alegação de subverter a ordem e a disciplina. O censor sublinha a passagem “Essa criança não morre e não perde a voz”, e, em seu parecer, declara que o protesto pode ser construtivo, quando feito nos termos legais, mas que a letra seria um alerta, uma ameaça, logo o protesto tornava-se subversivo no que tange a ordem e disciplina.
Por fim, analisemos a música “Cálice” de Gilberto Gil e Chico Buarque, escrita em 1973, mas lançada apenas em 1978.
A música é repleta de metáforas a respeito da situação política e social do país. Ao analisarmos a estrofe “[...] Pai, afasta de mim esse cálice” e a sua repetição, notamos que os censores, encarregados de aprovarem ou não a produção artística, interpretaram a palavra “cálice” com o imperativo “cale-se”, e que isso seria uma tentativa de criticar a própria censura.
Em toda a sua extensão a música critica a Ditadura, e fala das dificuldades de estar vivendo dentro daquele regime, fazendo referências à violência e brutalidade do regime, da dor e angústia de acompanhar as notícias, esperando situações piores, sabendo que tudo o que chegava a eles era filtrado e parcial, favorecendo o governo. O eu-lírico traz também o sentimento de impotência, tendo que seguir em frente, sem poder fazer nada, querendo “lançar um grito desumano”.
Assim, através de análises das letras das músicas censuradas, de diferentes interpretações de seus conteúdos, e dos diversos motivos que levaram tais músicas a serem censuradas, percebemos o quão grave e delicado era o momento, assim como os sentimentos que os governos militares despertavam nos cidadãos, de medo, angústia, desespero, dor, mas também de revolta, de luta.
Referências Bibliográficas:
de Moraes Salles, Ana Cláudia, Fernanda Surubi Fernandes, e Olimpia Maluf-Souza. "A MPB no regime militar: silenciamento, resistência e produção de sentidos." RUA 21.2 (2015): 341-361.
BERG, C. Mecanismos do silêncio: expressões artísticas e censura no regime militar. Autografia, 2019.
STEPHANOU, A. A. Censura no regime militar e militarização das artes. Porto Alegre: Edipucrs, 2001.
Amanda Gomes Fernandes, estudante de História
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