Em 1968, em Nova Iorque, em resposta à constante violência policial, aconteceu um levante no bar Stonewall Inn. Frequentado por homossexuais e transexuais, o Stonewall se tornou um marco do Gay Liberation Movement, movimento que lutava pelos direitos das pessoas LGBT nos Estados Unidos, e que rapidamente se fez presente em escala global.
Neste período, o mundo ainda passava pela grande polarização conhecida como Guerra Fria. Os Estados Unidos, preocupados com a possibilidade da situação cubana se replicar no restante das Américas, usam de sua influência para apoiar ditaduras militares em todo o continente. O grande objetivo destas ditaduras era afastar a “ameaça comunista”, e as consequências desses governos foram atrozes, inclusive para os grupos minoritários.
Ainda em 1968, o Brasil passava por um dos períodos mais difíceis e duros de sua ditadura, com o decreto do Ato Institucional nº 5, que, entre outras medidas, previa a censura da imprensa e de outros meios de comunicação.
Dez anos depois, em 1978, o Brasil já passava por um período de leves aberturas políticas, e é nesse contexto que surge o jornal Lampião da Esquina, que circulou até 1981. O jornal abordava diversos temas controversos e progressistas, como o feminismo, o movimento negro, o movimento operário, e, sobretudo, o movimento gay.
Utilizando diversas técnicas jornalísticas e estilos de reportagem e escrita, o Lampião buscava, ao mesmo tempo, desmistificar a homossexualidade e tudo o que fazia parte desse universo, e fazer denúncias da violência e da perseguição que o Estado praticava contra essas pessoas.
É fácil pensar, principalmente quando levamos em consideração o contexto político que temos hoje, que o Lampião fosse um jornal “de esquerda”, mas essa não era a realidade. O Lampião tinha uma única missão: trazer os homossexuais à luz. E, por isso, não fazia críticas exclusivas à ditadura, mas também a governos e movimentos de esquerda. No entanto, como, no Brasil, o governo era ditatorial e de extrema direita, esse era o principal ponto de ataque do Lampião.
O movimento gay brasileiro, na verdade, não tem seu início com o Lampião, mas sim com o Snob, outro jornal que publicava conteúdo voltado para o público homossexual. O Snob se diferenciava do Lampião pois não adotava nenhum caráter político explícito, seu conteúdo era focado em colunas de fofoca, ilustrações, concursos literários e entrevistas.
Mas, mesmo sem assumir uma ideologia política, o Snob contribuiu para a formação de uma identidade homossexual fluminense, que chegou a se manifestar enviando cartas à revista Realidade, após esta publicar uma matéria que caracterizava os homossexuais como “tristes e angustiados” e que dizia que estes negavam a condição de homem. Com o endurecimento da ditadura, o Snob chegou ao fim em meados da década de 1970.
Portanto, o auto-reconhecimento como homossexual era uma coisa que já borbulhava no imaginário fluminense, o que o Lampião fez foi espalhar esse pensamento pelo restante do país, e adicionar um teor político e ativista a esta identidade, especificamente o fato de não assumir aliados em partidos ou ideologias políticas tradicionais, mas de lutar pela liberdade, felicidade e pelos direitos, como vemos em um trecho da edição de número 10, que trazia uma reportagem a respeito de uma reunião na USP:
“Eu vou dizer agora o que metade desse auditório está sequiosa para ouvir. Vocês querem saber se o movimento guei é de esquerda, de direita ou de centro, não é? Pois fiquem sabendo que os homossexuais estão consciente de que para a direita constituem um atentado à moral e à estabilidade da família, base da sociedade. Para os esquerdistas, somos o resultado da decadência burguesa. Na verdade, o objetivo do movimento guei é a busca da felicidade e por isso é claro que nós vamos lutar pelas liberdades democráticas. Mas isso sem um engajamento específico, um alinhamento automático com grupos da chamada vanguarda. ”
(FELICIDADE também deve ser ampla e irrestrita. Lampião da Esquina, março de 1979)
O movimento homossexual era composto de diversos grupos que se organizavam de maneiras diferentes, como o grupo Somos, o grupo Eros, o Grupo Gay da Bahia e o GALF (Grupo Ação Lésbica Feminista). Mesmo que o Lampião não tivesse assumido ativamente um papel de liderança, devido ao alcance do jornal, vários desses grupos o utilizavam como guia e como principal divulgador de suas atividades.
Diferentemente dos Estados Unidos, no Brasil a homossexualidade nunca foi proibida pela lei, portanto não havia um elemento legal a ser combatido. A perseguição aos homossexuais e transexuais no Brasil se baseava em dois fatores principais, primeiramente, um fator mais civil e médico. A ideia de que as sexualidades dissidentes eram patologias mentais era muito aceita e divulgada pela grande mídia, e estava presente de forma muito profunda na sociedade.
O segundo fator é mais político, no qual a existência dessas identidades dentro do território brasileiro era um ataque direto à moral e aos bons costumes da sociedade, valores que eram defendidos pelos comandantes da ditadura.
As medidas utilizadas para combater a homossexualidade eram as mesmas utilizadas para combater, por exemplo, a prostituição. Essas medidas envolviam, em grande parte, prisões preventivas sob alegações de vadiagem, e, posteriormente, sob alegação de estratégia de combate à Aids. Essas ações afetavam principalmente as travestis, que, na época, ainda eram tratadas no masculino.
Essas perseguições normalmente tinham resultados sangrentos e violentos, e não eram bem vistas pelo conselho editorial do Lampião, que expunha suas opiniões de forma clara, em suas edições, como na edição de número 26, de julho de 1980, na página 20, acompanhada de fotografias de travestis sendo presas pela polícia se lê “(...) cenas das caças aos travestis, um esporte a que a polícia paulista vem se entregando com todo o empenho de que dispõe.”
Essa perseguição, é claro, não era restrita aos homossexuais homens e às travestis, atingia também outros grupos, como era o caso das lésbicas:
“O delegado Wilson Richetti e os famigerados homens da sua ‘operação rondão’, que andavam de quarentena em São Paulo, encontraram um meio de comemorar a proclamação da República: dia 15 de novembro, saíram às ruas da capital paulista em busca de homossexuais. Só que, dessa vez, não eram as bichas os alvos procurados, mas sim, as mulheres: os policiais invadiram os bares Cachação, Ferro’s e Bexiguinha, e as mulheres que lá estavam, incluindo as que possuiam carteira profissional assinada, foram todas detidas, debaixo do seguinte argumento: ‘É tudo sapatão’”
(RICHETTI volta às ruas. Lampião da Esquina, dezembro de 1980)
Essa perseguição, é claro, além de violenta, arbitrária e preconceituosa, era, também, corrupta. Não eram raros os casos de pessoas que eram detidas e só eram soltas após o pagamento de propina, e seus autores nunca eram punidos, como foi no caso da Operação Rondão:
“Segundo panfleto distribuído posteriormente pelos grupos Terra Maria, Ação Lésbica Feminista e Eros, na 4ª delegacia, para onde as detidas foram levadas, ‘foi constatado que os policiais recebiam dinheiro para libertarem as pessoas, sendo que aquelas que não possuiam, lá permaneciam’. Em seu panfleto, aqueles três grupos paulistas denunciaram: ‘Estamos novamente às voltas com a ação violenta da polícia, ação essa que outra vez ficará impune no que diz respeito as autoridades’”.
(RICHETTI volta às ruas. Lampião da Esquina, dezembro de 1980.)
A perseguição aos homossexuais, às travestis, e a qualquer identidade que escape da norma cis-hétero existe no Brasil desde muito antes da ditadura de 1964. No entanto, o fato de que estas identidades apresentariam uma suposta ameaça à moral e aos bons costumes, tão prezados pelos militares, fez com que essa perseguição fosse muito mais violenta, cruel e sangrenta do que antes.
Quando olhamos para as origens e as formas como estas identidades eram perseguidas, começamos a entender os motivos e as formas como essas perseguições se dão hoje, resquícios de uma época quando o Estado brasileiro era uma ameaça para seus próprios cidadãos. E quando olhamos o poder de organização e de resiliência dessas pessoas, que mesmo vivendo em um país onde o Estado as perseguia e assassinava, ousando, não apenas viver da forma mais autêntica possível, mas indo contra a corrente, desafiando o sistema, lutando pelos seus direitos, começamos a entender o que de fato fazia dessas pessoas quem elas eram.
Referências Bibliográficas:
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KOVALESKI, Douglas; MORETTI-PIRES, Rodrigo; TESSER JÚNIOR, Zeno. “Homofobia e os socialistas brasileiros em ‘O Lampião da Esquina’ (1978-1981)”. Revista Estudos Feministas, v. 26, n. 3, Florianópolis, 2018;
O Lampião da Esquina. Negros, mulheres, homossexuais e índios nos debates da USP: Felicidade também deve ser ampla e irrestrita, n. 10, 1979;
O Lampião da Esquina. Saindo do Gueto, n. 0, 1978;
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OCANHA, Rafael. “Repressão policial aos LGBTs em São Paulo na ditadura civil-militar e a resistência dos movimentos articulados”. In: GREEN, James; QUINALHA, Renan; CAETANO, Marcio; FERNANDES, Marisa. História do Movimento LGBT no Brasil. São Paulo: Alameda, 2018;
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O Lampião da Esquina. Richetti volta às ruas, n. 31, 1980;
QUINALHA, Renan. Contra a moral e os bons costumes: a política sexual da ditadura brasileira (1964-1988). Tese (Doutorado em Relações Internacionais) - Programa de Pós-graduação em Relações Internacionais, Universidade de São Paulo, 2017.
André Fabro Neri, estudante de História
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