As origens do golpe de 1964 vão muito além do que se imagina em um primeiro momento. Desde o primeiro governo de Getúlio Vargas, podemos observar séries de tensões entre os militares e a esfera executiva. Com o retorno de Vargas à cadeira presidencial em 1951, mas especialmente com os governos que o sucederam, o desejo golpista dos militares veio à tona mais uma vez: os governos de Jânio Quadros e de João Goulart - um político cujos projetos políticos de maior destaque estavam voltados para a democratização e à Reforma Agrária, logo colocando-o em um posição de ser taxado como ''comunista'' - compuseram o clima de instabilidade política ideal para a execução dos planos militares de tomada do poder. Ao analisar a atmosfera política e ideológica que permeava o Brasil às vésperas do golpe, notamos que o medo de que ''o comunismo tomasse conta do país'' era um argumento muito utilizado por grupos civis, entidades internacionais e pelos próprios militares que instauraram a ditadura a fim de justificar e legitimar o regime de exceção imposto. Mas quais seriam os fundamentos desse medo? A instauração de um governo comunista era algo realmente plausível ou que já estava em curso à época?
A Guerra Fria e o ''Espantalho Vermelho''
Os anos de Guerra Fria (1947 - 1991) estabeleceram tensões ao redor de todo o globo. O cenário geopolítico mundial durante o período foi dividido, a grosso modo, entre os países alinhados política e economicamente com os Estados Unidos (''pólo capitalista'') e aqueles alinhados com a União Soviética (''pólo comunista''). Desde a Revolução Cubana consumada em 1959, os Estados Unidos vinham desenvolvendo um receio de que outros países do Terceiro Mundo - especialmente os da América Latina - seguissem os mesmos passos da ilha caribenha e estabelecessem governos comunistas por toda a porção sul do continente americano. Contudo, por mais que o globo estivesse de fato ''bipolarizado'', a implantação de governos comunistas na América do Sul sequer estava no radar da União Soviética durante os primeiros anos da Guerra Fria, não passando de uma conspiração alimentada por uma paranóia e as crescentes tensões da guerra. A União Soviética só foi aproveitar-se do quadro político cubano nos anos 70, mais de uma década após a revolução ter ocorrido (HOBSBAWN, 2019, p. 424). Ainda assim, sob o argumento de que ''o perigo comunista'' era uma real ameaça que deveria ser exterminado, praticamente todos os países do ''Cone Sul'' estabeleceram regimes ditatoriais, contando inclusive com o apoio diplomático, midiático e tecnológico dos Estados Unidos, que reconheceram formalmente a ''pseudolegitimidade'' dessas ditaduras; financiaram campanhas de propaganda contra presidentes democratas de esquerda; forneceram tecnologias e acesso a bancos de dados de suas forças investigativas, como a CIA; dentre outras ações que auxiliaram ou agilizaram o processo de tomada de poder por ditadores de direita. No Brasil, o processo não foi diferente.
Observa-se que foi criada e difundida por toda a América Latina durante a Guerra Fria uma imagem repulsiva acerca do comunismo, como se ele fosse uma ''ameaça em curso'' a ser temida e eliminada, ainda que, na verdade, tal ''monstruosidade'' estava longe de se tornar uma realidade. No imaginário social, o comunismo se tornou ''um mal a ser combatido'', mas na prática, ele mais se assemelhava a um ''espantalho'': uma figura artificial, medonha e caricata que não apresenta risco real algum, mas que projeta um medo profundo, passando a apresentar-se como a causa principal de todas as mazelas do mundo.
A ''Marcha da Família com Deus pela Liberdade'' e as mobilizações civis pró militares
A ditadura não foi sustentada durante mais de vinte anos sem contar com um mínimo apoio popular. A ''Marcha da Família com Deus pela Liberdade'' foi um conjunto de manifestações que ocorreram poucos dias antes do golpe, dizendo lutar ''pela democracia do país'', pela ''defesa da família'', contra ''o comunismo que se alastrava pelo país'' através do governo de João Goulart, e a favor de uma intervenção militar. Apesar de suas origens em grupos católicos, tal movimento mobilizou diversos outros grupos da sociedade. Por unir o discurso religioso aos discursos anticomunista, a Marcha aglutinou diversos outros sujeitos que tinham os mesmos anseios e que estavam igualmente insatisfeitos com a situação do país, mas que não estavam integrados a nenhum grupo onde pudessem trazer volume aos seus medos e desejos.
Para além dessa mobilização, outro aspecto interessante da Marcha é a capacidade que ela teve de criar uma narrativa muito particular da realidade em que estava inserida. Enquanto uma das principais causas levantadas pelo movimento era a ''luta pela democracia'', ele simultaneamente declarava apoio à uma tomada de poder autoritária. Por mais que essas duas causas levantadas pareçam conflitantes entre si (e de fato o são), dentro da narrativa criada, elas caminham uma ao lado da outra. O conceito de ''democracia'' utilizado pelo grupo distorce a noção convencional de ''sistema político em que todo cidadão detém o direito à participação política''. Em vez disso, para o grupo, democracia seria uma forma de governo ''forte'', ''estável'', que não cedesse lugar a formas de pensamento políticos ''subversivos'', como o comunismo. Logo, segundo tal lógica – extremamente inconsistente, deve-se dizer -, ao apoiar um regime militar a Marcha e seus representantes estariam lutando pelo estabelecimento de um governo forte que ''livraria o país das garras do comunismo'', e que, portanto, seria ''democrático'' (CORDEIRO, 2021, p.15). Não se trata de direitos políticos, sociais ou econômicos, mas sim, da supressão de um medo completamente irracional e de um problema simplesmente inexistente. Racional ou não, fato é que tais movimentos angariaram apoio civil aos militares, que não deixaram de se aproveitar da situação para dar ares de ''legitimidade'' ao golpe e à ditadura que instauraram.
O golpe e a ''Revolução imaginária''
Como dito anteriormente, João Goulart defendia medidas como a reforma agrária, que aos olhos dos militares e de setores ricos e conservadores da sociedade civil, eram vistas como a manifestação mais pura do comunismo. Alegando que João Goulart, assim como seu antecessor, estavam empenhados em implantar um governo comunista no Brasil, as forças armadas – já muito bem articuladas entre si, entre determinados setores da sociedade civil e entre as inteligências governamentais estadunidenses – esperaram um momento de maior fragilidade no governo de Jango, que já vinha perdendo créditos com grupos civis e militares. No dia 1 de abril de 1964, afirmando agir pela defesa da democracia do país frente as ''ímpias garras do comunismo'', os militares passaram por cima de todo e qualquer tipo de legislação e impuseram um regime ditatorial que vigorou por mais de 20 anos.
A tentativa de enquadrar o golpe como uma ''Revolução'' nos revela um pouco da narrativa que os militares gostariam de promover acerca de suas ações. No manifesto ''À Nação'' (preâmbulo do Ato Institucional n°1), diversas vezes vemos o termo ''Revolução'' sendo aplicado à ditadura que se erguia (CNV v.1, 2014, p. 94-95). Se realmente acreditavam nisso ou não, fato é que ao se declararem líderes e/ou participantes de uma revolução, os militares criaram uma imagem de ''benfeitores'' ao redor de si mesmos, legitimando suas ações enquanto ''corretas'' justamente por estarem fazendo parte ''da luta contra um temível inimigo chamado comunismo''. Os efeitos dessa imagem propagada pelos governos militares sobre si mesmos podem ser percebidos até os dias de hoje, quando, por vezes, se ouve a nomenclatura ''Revolução'' em referência à ditadura militar brasileira.
Memória e ditadura
Dentre as inúmeras sequelas que a ditadura militar brasileira deixou nas esferas sociais, institucionais, econômicas e políticas, aquelas deixadas no imaginário social e nas narrativas históricas saltam aos olhos: o culto à imagem de ditadores, o discurso ''anticomunista'' difuso, noções deturpadas do que é a democracia e narrativas negacionistas do que foi a ditadura militar permanecem vivas até os dias de hoje. Novas ''Marchas da Família com Deus pela Liberdade'' ocorreram nos últimos anos, contando, inclusive, com a presença do atual presidente da república (um adorador publicamente assumido dos crimes que ocorreram e dos criminosos no poder durante a ditadura.)
Por trás de tantas versões e narrativas negacionistas, a verdade é que, durante o golpe, os militares e os setores empresariais e elitizados da sociedade brasileira jamais estiveram ao lado do povo, da defesa da democracia ou da liberdade política plena. O que almejavam era única e exclusivamente aproximar-se e tomar à força determinadas instituições políticas – iniciando pelas do poder executivo - para si, a fim de colocarem em prática os projetos de governo que tinham em mente e dos quais certamente se beneficiariam. A ''Revolução'' que diziam ter feito não passou de um golpe sustentado por narrativas falsas. A ''Democracia'' que os militares supostamente estariam defendendo foi soterrada por um regime ditatorial, corrupto e de exceção. A ''Liberdade'' se consolidou sob a forma de censura midiática, exílios políticos e perseguições em nível nacional e internacional. Ao invés da ''defesa da família'' que tanto almejavam aqueles que apoiaram o golpe, tivemos prisões arbitrárias seguidas por desaparecimento e assassinato de trabalhadores, camponeses, estudantes, travestis, populações indígenas, dentre tantos outros grupos civis.
O primeiro de abril certamente não é uma data a ser comemorada, mas em hipótese alguma deve ser esquecida. A memória sobre as violências que o Estado e os militares cometeram, mas principalmente a lembrança que temos das vítimas e dos sofrimentos diversos causados pela ditadura não devem apenas ''desaparecer'' para dar lugar às versões fantasiosas daqueles que dizem ter sido ''Revolução'' aquilo que não passou de terrorismo (vide atentado Riocentro), tortura (vide atuação do DOI-CODI), corrupção (vide desvios de verba nas ''Obras Faraônicas''), assassínio (vide execução de Vladimir Herzog) e genocídio (vide extermínio de populações indígenas) prolongados por 21 anos da história de nosso país.
Bibliografia:
BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Brasília: CNV, 2014. v. 1;
BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Brasília: CNV, 2014. v. 2;
CORDEIRO, Janaína M. A marcha da família com Deus pela liberdade em São Paulo: direitas, participação política e golpe no Brasil, 1964. Revista de História, [S.l] n. 180, p. 1-19, 2021. DOI: 10.11606/issn.2316-9141.rh.2021.167214. Disponível em: https://www.revistas.usp.br.br/revhistoria/article/view/167214. Acesso em 20 mar. 2022;
HOBSBAWN, Eric. Era dos Extremos: O breve século XX: 1914-1991. 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2019;
PRESIDENTE DA SEMANA – EP. 16: Jânio Quadros, a renúncia, e João Goulart, o golpe. Participante: Jorge Ferreira. Apresentador: Rodrigo Vizeu. São Paulo: Folha de S. Paulo, 27 jul. 2018. Podcast. Disponível em: https://open.spotify.com/show/7M32AKysUDCeEa3EjnvmQN. Acesso em 15 mar. 2022;
PRESIDENTE DA SEMANA – EP. 17: Castelo Branco, as fundações da ditadura. Participante: Heloísa Starling. Apresentador: Rodrigo Vizeu. São Paulo: Folha de S. Paulo, 3 ago. 2018. Podcast. Disponível em: https://open.spotify.com/episode/7F5AHVoH57vfJMiTvAod5t. Acesso em 16 mar. 2022.
SILVA, D. C. P. . Embates semiótico-discursivo em redes digitais bolsonaristas: populismo, negacionismo e ditadura. Trabalhos em linguística aplicada, v. 59, p. 1171-1195, 2020. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rh/a/N3y4qtLG8XkgR3gKP9yvwBm/?lang=pt#
Escrito por Caio Dias, estudante de História
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