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Foto do escritorMemória e Ditadura nas escolas do DF

“Liberdade, Liberdade” o samba cantou


Fevereiro.... ah, fevereiro! Em tempos “normais”, pré pandêmicos, o assunto do momento nesse mês para grande parte dos brasileiros – e também, sinceramente, da escritora que aqui vos narra – seriam as festas de Carnaval. Essa que é a celebração mais famosa do país e atrai por ano milhares de pessoas às ruas, não só gente deste mesmo trópico, mas também aqueles “gringos” que vem ao Brasil para aproveitar o grande evento. Várias são as localidades escolhidas para as festividades, sendo a mais famosa o Rio de Janeiro: cidade do Carnaval, das praias e do samba. Seja no barzinho, em uma roda de amigos sambistas ou na caixinha de som que acompanha o dia na praia, o samba está presente na essência idealizada da cidade. Todos os anos durante o Carnaval o desfile das escolas de samba na Sapucaí é ansiosamente aguardado pela sua energia, beleza e a curiosidade envolvendo os mais diversos temas de enredo do espetáculo. Esses que variam entre fantasia, realidade e por diversas vezes pronunciam verdadeiras críticas políticas e sociais. Mas o que tudo isso tem a ver com a Ditadura civil-militar iniciada em 1964?


O regime ditatorial brasileiro operava em uma lógica do pensamento autoritário que necessitava a todo custo restabelecer a ordem no país e salvá-lo de um suposto perigo comunista iminente. Para atingir esse fim os militares no comando desenvolveram um projeto social e político que utilizava de forte repressão para garantir a obediência total da sociedade. Órgãos como o Serviço Nacional da Informação (SNI), Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) e os Destacamentos de Operações de Informação - Centro de Operações de Defesa Interna (DOI/CODI) foram criados para investigar e reprimir todas aquelas práticas que contestassem a ideologia do regime (KOSSLING, 2007). As ações desses órgãos de informação e investigação levaram a perseguições, exílio, tortura e até à morte de estudantes, sindicalistas, políticos, dentre outros sujeitos e grupos de oposição. No campo da música, por exemplo, muitos foram os musicistas, cantores e compositores perseguidos e censurados¹ e no samba, estilo com raízes periféricas e transgressoras, não seria diferente.

As escolas de samba do Rio de Janeiro se tornaram campo de disputas ideológicas durante a Ditadura: espaço de protestos, perseguições e censura. Os órgãos de informação investigavam as agremiações carnavalescas e produziam os mais diversos tipos de documentos sobre diretores, foliões e compositores, além de documentos que descreviam as ações de informantes e policiais na organização do carnaval (CRUZ, 2011). A partir desses relatórios é possível perceber que havia a preocupação do regime com o mundo do samba por ser considerado um espaço de discussão política sujeito à “infiltração e disseminação de ideias “subversivas” de comunistas” (CRUZ, 2011, p. 8). O seguinte recorte de um dos dossiês elaborados pelos órgãos de informação do regime mostra como eles buscavam associar as agremiações com aqueles considerados “subversivos” pelo governo (movimentos estudantis, movimentos sociais, etc):


Origem: Informante Ao: DPF-GB/DOPS-GB/CISA-RJ/ CENIMAR Para Adidos (auxiliares): 1)Consta que as Escolas de Samba da Guanabara estão sendo sondadas por estudantes de esquerda, que pretendem infiltrar-se naquelas Agremiações com propósitos subversivos, visando conscientizar os operários a tomar posição contra o Governo da Revolução. 2)Em princípios tais elementos estão sendo rechaçados pelos sambistas, que não querem se envolver em política. 3)Os jovens citados apresentam-se nas escolas, pretendendo sair nos desfiles de carnaval integrando as chamadas Alas dos Estudantes.


Fonte: Coleção-Setor: Secreto/ Caixa: 411/ Série-Pasta: 74/ Folha: 73 a 76 - Centro de Informações da Marinha. Em, 19/11/1970 APERJ.


Em busca de obter controle sobre possíveis manifestações “subversivas” e práticas “terroristas”, foram criadas regulamentações para os desfiles das escolas de samba e para a realização de blocos de carnaval. “Através de normas estabelecidas tentava-se controlar, aprovar ou apenas fiscalizar desde os estandartes, adereços, alegorias, fantasias, até as letras de sambas enredos, marchas carnavalescas, etc.” (CRUZ, 2011, p.11). Mesmo diante de tantas normas e censura impostas, algumas agremiações conseguiam espaço para criticar, mesmo que sutilmente, o regime ditatorial em seus sambas enredo.


Fonte: Brasil de Fato. Desfile da GRES Império Serrano em 1969.


No início de 1969, pouco tempo após ser decretado o Ato Institucional nº 5 (AI-5)², quando a Ditadura atingiu seu ápice de supressão de direitos, a GRES Império Serrano desfilou no carnaval com o samba enredo “Heróis da Liberdade”. Os carnavalescos Acir Pimentel e Swayne Moreira Gomes idealizaram um desfile que homenageava sujeitos e grupos que lutaram pela liberdade a longo da história brasileira, remetendo a Palmares, a abolição da escravidão, a Inconfidência Mineira e outros. Abaixo um trecho de “Heróis da Liberdade”, escrita por Mano Décio, Manoel Ferreira e Silas de Oliveira:


Com flores e alegria veio a abolição

A independência laureando seu brasão

Ao longe, soldados e tambores Alunos e professores Acompanhados de clarim Cantavam assim: Já raiou a liberdade A liberdade já raiou Essa brisa que a juventude afaga Esta chama que o ódio não apaga Pelo universo é a evolução Em sua legítima razão Samba, oh samba


A letra original cantava no 11º verso “Pelo universo é a revolução”, mas ao ser interceptada pelos censores precisou ser alterada para “evolução” (FREIXO, 2018). Ao eleger um tema como esse para seu enredo, a agremiação, através da lembrança de lutas por liberdade e tempos menos repressivos, discutia o momento que o país se encontrava e se colocava como espaço de debate político. Em entrevista, o ex-carnavalesco da Salgueiro, Pamplona, conta que naquele ano a Império Serrano teve alguns de seus integrantes presos e foram exigidas explicações sobre o enredo do desfile (CRUZ, 2009, p.4).

Ao longo dos anos do regime outras agremiações propuseram enredos que eram críticos ao período ditatorial, como a GRES Acadêmicos do Salgueiro em 1967 com “História da Liberdade no Brasil” ou a União da Ilha do Governador em 1985 com “Um Herói, Uma Canção, Um Enredo”. Por outro lado, houveram aquelas escolas que homenagearam o governo, como a Beija-Flor e seu enredo “O grande decênio” em 1970 (CRUZ, 2009).

Vários são os espaços e sujeitos que tiveram seus direitos de expressão e existência cassados ao longo da Ditadura civil-militar brasileira e com as escolas de samba não foi diferente. Muitos dos documentos referentes à censura e perseguição das agremiações foram convenientemente perdidos após o regime em uma tentativa de apagar a memória sobre esses acontecimentos e controlar as narrativas históricas. O que fica, então, são as memórias daqueles que sofreram as mais diversas agressões, físicas e psicológicas, durante o período e o samba cantado nos enredos que denunciaram a supressão de direitos e gritavam o desejo para o futuro: LIBERDADE.


Fonte: Jornal Extra. Desfile da GRES Acadêmicos do Salgueiro enredo “Histórias da Liberdade no Brasil”, 1967.



Notas:

¹ - Caso tenha interesse em saber mais sobre o tema da censura a diversos gêneros musicais, há um texto na Coluna intitulado “Música e Ditadura”.


² - Para saber mais sobre o AI-5 sugiro a leitura do texto “Uma elegia contemporânea: o futuro do país e o AI-5" na Coluna.


REFERÊNCIAS


  • CRUZ, Tamara Paola dos Santos. Vigilância e censura policial às Escolas de Samba na Ditadura Militar. In Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH. São Paulo, jul. 2011.

  • . Escolas de Samba Cariocas: Enredos e Governos Militares (de 1964 a 1986). In ANPUH, XXV Simpósio Nacional de História. Fortaleza, 2009.

  • FREIXO, Adriano de. Conheça a história do samba da Império Serrano que desafiou militares em 1969. Brasil de Fato, Rio de Janeiro, 09, fev. 2018. Disponível em: < https://www.brasildefatorj.com.br/2018/02/09/conheca-a-historia-do-samba-da-imperio-serrano-que-desafiou-militares-em-1969 >

  • KöSSLING, Karin Sant' Anna. As lutas anti-racistas de afro-descendentes sob vigilância do DEOPS/SP (1964-1983). Dissertação (Mestrado em História Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007. doi:10.11606/D.8.2007.tde-01112007-142119. Acesso em: 22 fev. 2022.

Escrito por Júlia Duarte, estudante de História.



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