Cerca de um mês atrás, em 19 de agosto, comemorávamos o que conhecemos como o Dia do Orgulho Lésbico, aprovado pela Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, em junho de 2008. Mas o que conhecemos verdadeiramente sobre essa data?
Em 19 de agosto de 1983, por volta das 22h, Rosely Roth, uma das fundadoras do Grupo de Ação Lésbico-Feminista (GALF), e suas participantes e/ou simpatizantes, invadiam o Ferro’s Bar – extinto em São Paulo, porém eternizado na história do movimento lésbico brasileiro.
(Fotógrafo Ovídio Vieira)
O local foi palco de uma erupção de descontentamentos que o público lésbico expressava com o proprietário do bar, com as incursões policiais na cidade de São Paulo e, principalmente, com as inúmeras políticas sociais incentivadas pelo governo e que discriminavam a existência da mulher lésbica.
Durante o ano de 1983, a abertura política estava em seu ápice. A Ditadura Militar terminaria em dois anos, porém os impactos retrógrados continuavam por toda a parte. O silenciamento de grupos sociais foi organizado “com duração” para além do período, e foi apenas durante a elaboração da Constituição de 1988 que certos direitos lésbicos foram discutidos.
As origens do levante no Ferro’s Bar datam o movimento Stonewall Inn, em 1968, em Nova Iorque. O movimento representava uma reação à constante violência policial e se tornou um marco internacional do orgulho gay.
Durante 1968, a realidade brasileira era de completa oposição, pois foi neste ano que a Ditadura atingiu outro ápice, o da censura, da tortura e do controle estatal. Os resultados da insatisfação com os códigos comportamentais impostos pelo governo ditatorial militar e a sociedade conservadora, podem ser entendidos durante 1983, e explicados por Pollack (1989):
[...] em momentos de crise, as memórias que são mantidas nos subterrâneos vêm à tona, e há uma disputa entre elas. Além disso, apesar do caráter destruidor, uniformizador e opressor da memória coletiva, as memórias subterrâneas são transmitidas de geração em geração, e o longo silêncio, ao invés de produzir o esquecimento, gera uma resistência aos discursos oficiais.
Com isso, anos após Stonewall, mulheres lésbicas brasileiras, também completamente insatisfeitas com as incursões policiais que expulsavam as frequentadoras de bares em São Paulo como o Ferro’s Bar, Cachação e Bexiguinha, organizaram-se em Manifesto contra a violência de gênero.
(Acervo Lésbico Brasileiro)
A ‘Operação Sapatão’ foi um momento emblemático da Ditadura Militar que ocorreu no dia 15 de novembro de 1980, quando a PM foi às ruas de São Paulo com uma função: prender o maior número possível de lésbicas, naquilo que ficou conhecido como a Operação Sapatão.
O Ferro’s bar era um local de encontro de mulheres lésbicas, e diante dos eventos repressivos que estavam ocorrendo, passou a representar um local propício para discutir e se organizar politicamente como movimento.
O jornal “Chana com Chana”, com conteúdos a respeito da identidade e cultura lésbica, era distribuído por anos no estabelecimento e sua proibição, em 23 de julho de 1983, pelo proprietário, que chegou a utilizar a força física para impedir a distribuição, foi o que causou a criação do happening pelo GALF – folhetos que convidavam a comunidade lésbica a se revoltarem contra o que ocorreu naquele dia – e apresentava, pela primeira vez, a proposta de uma manifestação contra a discriminação lésbica.
(Rosely Roth lê o jornal Chana com Chana)
Assim, na noite de 19 de agosto, mulheres lésbicas dirigiram-se ao Ferro’s bar para que suas reivindicações fossem ouvidas e para elas fossem vistas e viabilizadas na luta por seus direitos.
(Fotógrafo Ovídio Vieira)
(Fotógrafo Ovídio Vieira)
(Fotógrafo Ovídio Vieira)
(Jornal Folha de São Paulo, 1983)
(Jornal Chana com Chana, 1983)
Com isso, o dia 19 de agosto, se tornou o dia do Orgulho Lésbico e a data foi escolhida em memória à esta primeira grande manifestação de mulheres lésbicas no Brasil, ocorrida em 1983, em São Paulo.
POLLAK, M. Memória, esquecimento, silêncio. Revista estudos históricos, v. 2, n. 3, p. 3-15, 1989.
PERRONI, Thaís Cattani, et al. "As representações do movimento de Stonewall nos Estados Unidos (1969)." Epígrafe, 2019.
LAHNI, Cláudia Regina, e Daniela AUAD. "Não é mole não, ser feminista, professora e sapatão: apontamentos de uma história a partir do espaço das lésbicas e da lesbianidade na produção de conhecimento sobre mídia.” Anos 90, 1990.
Silva, Sandro Gorski. "Da invisibilidade à pavimentação dos direitos humanos LGBTQIA+: um diálogo entre as conquistas históricas e a consolidação de direitos.” Revista Brasileira de Pesquisas Jurídicas, 2020.
Lessa, Patrícia. "Visibilidade e ação lesbiana na década de 1980: uma análise a partir do grupo de ação lésbico-feminista e do Boletim Chanacomchana." Revista Gênero, 2008.
Acervo Lésbico Brasileiro.
Acervo de fotografias de Ovídio Vieira.
Amanda Gomes Fernandes, estudante de História
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