Apesar de ter sido o último dos militares alçados ao poder, João Figueiredo e seu governo não necessariamente simbolizaram um ''afrouxamento'' no regime ditatorial e em sua truculência para com a população civil. Um exemplo simbólico que retoma à imagética xucra e violenta de governantes anteriores, seriam as famigeradas frases dadas por Figueiredo: no que se refere à transição democrática, ele disse ''É pra abrir mesmo, e quem quiser que não abra, eu prendo e arrebento''. Contudo, a inflexibilidade da ditadura durante o governo de Figueiredo não se encontrava apenas no campo do discurso, tendo em vista que os aparelhos repressivos do Estado ainda estavam em agência plena: em março de 1979, tem-se o assassinato, tentativa de ocultamento de cadáver, e o forjar do suposto suicídio do diplomata brasileiro José Jobim; ao decorrer dos anos 80, houveram uma série de atentados a bomba à bancas de jornal e à instituições que faziam oposição à ditadura, como a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) e a ABI (Associação Brasileira de Imprensa), sendo o atentado do Riocentro, no ano de 1981, o mais emblemáticos dentre estes ataques. No presente artigo, trabalharemos em maiores detalhes sobre o atentado (felizmente) frustrado de 1981.
O Atentado
Em comemoração ao Dia do Trabalho, o Cebrade (Centro Brasil Democrático, uma organização ligada ao Partido Comunista Brasileiro) realizava um evento para milhares de pessoas na noite de 30 de abril de 1981, no centro de convenções Riocentro. Durante o show, houve uma explosão no estacionamento do Riocentro, e outra no [REDE ELÉTRICA]: a primeira foi detonada dentro de um Puma 1977, onde estavam os corpos, dilacerado e gravemente ferido, respectivamente, do sargento Guilherme Pereira do Rosário e do capitão Wilson Luís Chaves Machado (ambos integrantes do DOI-CODI do I Exército). Após investigações concluiu-se que a bomba seria instalada debaixo do palco principal tendo, contudo, sido detonada prematuramente. A segunda explosão, coordenada pelo coronel Freddie Perdigão Pereira, ocorreu próxima à estação de fornecimento de energia do centro de convenções, com o objetivo de cortar a energia do evento e interromper o show (intento este fracassado, tendo a bomba não interrompido a rede elétrica).
Como se o caso já não fosse perturbador e bizarro o suficiente, as articulações criminosas dos militares (e de alguns civis, como veremos em breve) envolvidos no atentado do Riocentro se estendem para semanas antes do evento em si. O comandante que havia sido convocado pelo presidente do centro de convenções para fazer o policiamento do evento foi exonerado de seu cargo dois dias antes do evento. Para além disso, no dia do evento, o coronel Nilton de Albuquerque Cerqueira (comandante geral da PM do Rio de Janeiro) ordenou que não fosse dado qualquer tipo de policiamento ao evento, o que ia totalmente contra a prática da polícia militar, que sempre monitorava os eventos que aconteciam no Riocentro. Por fim, houve a tentativa de desmobilizar a segurança local do centro de eventos: Maria Ângela Lopes Capobiango, diretora do próprio Riocentro, tentou afastar o chefe da segurança local de exercer sua função, além de ter pedido para serem trancadas as saídas de emergência com o evento em curso.
Para além do pânico generalizado de uma plateia confinada em um espaço sem saídas, o atentado, se bem sucedido, seria posteriormente imputado sobre uma fictícia esquerda armada (digno de nota o fato de que guerrilhas e polos de resistência armada à ditadura haviam sido brutalmente suprimidos na década anterior). Retomando a noção de que a política brasileira rumava para a redemocratização, um atentando de autoria atribuída a um suposto ''grupo terrorista anarcocomunista'' traria à tona, uma vez mais, discursos como aqueles perpetrados às vésperas do golpe de 1964, e que ajudaram a construir uma narrativa – por mais delirante que ela fosse – que sustentou a ditadura em seus princípios. Uma vez que ''o perigo ainda paira sobre a sociedade brasileira'', a continuidade do regime ditatorial estaria justificada na mentalidade de militares, e de determinados grupos civis. Inclusive, a despeito do fiasco que foi toda a operação, a narrativa de que os militares teriam sido as vítimas – e não os criminosos que arquitetaram o atentado – tentou ser divulgada por certas autoridades das forças armadas e por jornais alinhados à elas. Ainda que disseminada através de canais de comunicação oficiais e defendida por militares do alto escalão, a crença nessas narrativas por parte da população civil foi diminuta: no final das contas, o atentado terrorista mal sucedido apenas contribuiu para o aprofundamento da crise de legitimidade/popularidade da ditadura como um todo. A crise política desencadeada pelo atentado acarretou na saída do general Golbery de Couto e Silva – uma antiga figura na política brasileira, muito presente durante os governos da ditadura militar – da cúpula do governo de Figueiredo. Em uma carta pessoal endereçada ao presidente, ele disse:
''A convicção bem generalizada de que os 'chamados DOI-CODI' − por elementos como o capitão e o sargento vitimado, pelo menos − tiveram participação ativa na autoria do atentado frustrado coloca o governo e, infelizmente, o próprio presidente – por mais que se tenha conseguido colocá-lo fora do quadro decisório, apenas do ponto de vista exclusivamente formal − em dilema inescapável: ou incapacidade de ação repressora, por falta de autoridade efetiva, ou complacência e comprometimento de fato, em grau maior ou menor, no intento terrorista, pelo menos em seu acobertamento''.
Terrorismo de Estado e impunidade frente ao terror
O conceito de ''Terrorismo de Estado'' remonta à Revolução Francesa, mais especificamente, ao período de 1793 a 1794 em que os jacobinos estavam no poder. Em poucas palavras, o termo indica o uso sistêmico da violência do Estado contra sua própria população, disseminando um sentimento generalizado de terror. O caso Riocentro foi talvez o caso mais emblemático do aparelhamento e uso do Estado contra sua população civil, a fim de inculcar medo generalizado na sociedade à época. Compreender a ação e compreender os participantes envolvidos, enquanto ato e agentes terroristas, não é uma leviandade hiperbólica: a taxação sequer é negada por aqueles da cúpula à época. Há de se adicionar, que este não foi o único caso que se enquadra na definição de terrorismo de Estado: operações de tortura, perseguição política, desaparecimento forçado são algumas outras práticas sistêmicas que ocorreram durante a ditadura, e que hoje constam no direito internacional (ao qual o Brasil é submetido, diga-se de passagem) enquanto crimes contra a humanidade. Dentre os países da América Latina que passaram por ditaduras militares durante o século passado, o Brasil carrega a pecha de ser o único país que não apenas não puniu militares envolvidos em atentados contra a nação brasileira, como também foi o único a estender a anistia para tais sujeitos. As sequelas das violências perpetradas pela ditadura e seus agentes permanecem latentes até os dias de hoje, seja no número de torturados, executados, desaparecidos, perseguidos, e de suas famílias, seja na impunidade do Estado frente aos agentes que atentaram contra sua própria população.
BIBLIOGRAFIA:
CÁLICE – Episódio 01: O que se passou?. Apresentador: Orlando Calheiros. Rio de Janeiro: Atabaque produções, abr. 2022. Podcast. Disponível em: https://open.spotify.com/episode/1TlOIPJYYuNe7YHjOHVAE6. Acesso em 05 de ago. 2022;
PRESIDENTE DA SEMANA – EP. 21: João Figueiredo, o regime escreve seu fim. Participante: Angela Moreira. Apresentador: Rodrigo Vizeu. São Paulo: Folha de S. Paulo, set. 2018. Podcast. Disponível em: https://open.spotify.com/episode/0FQYE3NXQZWBCi5jmpq0d9. Acesso em 05 ago. 2022;
BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Brasília: CNV, 2014. v. 1;
ARTURI, Carlos S. O debate teórico sobre mudança de regime político: o caso brasileiro. Revista de sociologia e política n. 17.
MACHADO, Patrícia da Costa. Crime de lesa humanidade: sistema internacional de proteção aos direitos humanos e o caso brasileiro. ANPUH/RS. Anais do XII Encontro Estadual de História. Acesso em 03 de ago 2022.
Escrito por Caio Victor Dias, estudante de História
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