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Foto do escritorMemória e Ditadura nas escolas do DF

As Meninas: Como Lygia Fagundes Telles Publicou Uma Crítica à Ditadura nos Anos De Chumbo


Cena do filme As Meninas, de 1995.

Fonte:<https://www.jornaldocomercio.com/_conteudo/cultura/2018/06/632222-as-meninas-e-destaque-desta-sexta-feira-no-canal-brasil.html>


No dia 3 de abril de 2022, em São Paulo, faleceu a escritora Lygia Fagundes Telles. Chamada de “a dama da literatura brasileira”, a autora de 98 anos “foi uma das primeiras ficcionistas a escrever sobre as torturas e as violações dos direitos humanos enquanto elas ocorriam em plena ditadura” (SANTOS, 2020, p. 2). Um de seus romances, As Meninas, foi publicado em 1973 — cerca de cinco anos após o Ato Institucional n° 5 ter sido baixado — e, sem dúvidas, dialoga com o momento da história do Brasil.


No entanto, quando se considera que, durante a ditadura, aproximadamente 140 livros foram vetados, censurados e ainda considerados agravantes de crimes, é inevitável se questionar: o que Lygia Fagundes Telles fez para que o seu livro As Meninas, clara crítica ao sistema ditatorial, fosse publicado?

As Meninas conta o cotidiano, os anseios e os dramas de três jovens estudantes. Lorena de Vaz Leme, que é estudante de Direito, parte da burguesia, descrita como a mais inocente, preocupada com si mesma, garota sensível e culta; Lia de Melo Schultz, estudante de Ciências Sociais, politizada, militante contra a ditadura, namora com Miguel, rapaz que foi detido pelos militares por sua resistência; e Ana Clara Conceição, estudante de Psicologia, filha de uma prostituta, possui problemas com drogas – seu apelido é Ana Turva – e tem um relacionamento com Max, um traficante (Nunes, 2020).


Duas de três protagonistas são problemáticas, “contrárias à moral e aos bons costumes”, e daí vem uma das principais ferramentas de Telles para driblar a rígida análise dos militares: metade do livro tem a narração conduzida por Lorena, não coincidentemente a que seria mais aceita pela alta sociedade. A estudante de Direito é a voz central do romance, “da burguesia, voz da alienação, da religião, da juventude, do feminino, que indica a condição da mulher na sociedade” (Santos e Fernandes, p. 78).


Além das características agradáveis de Lorena, em seus trechos de consciência há a presença de diversos eufemismos, sua fala sempre suavizada, pouco rude, detalhes sutis em suas descrições prolongadas. Assim, o critério para as publicações – não ferir “a moral” – era seguido. Santos e Fernandes destacam o seguinte trecho:


Duas abelhinhas louras, dessas que só fazem mel e amor, pousaram no meu pé, primeiro uma e depois a outra. Afasto as brandamente, o gesto tem que ser brando para que não se sintam rejeitadas, viu, M.N.? Se você não me quiser, é assim que deve fazer comigo, vai, minha abelhinha, vai. Antes de voar, a maiorzinha delas esfregou as duas patinhas dianteiras, como quando se lavam as mãos e em seguida esfregou uma das patas até a extremidade do abdômen listrado de amarelo. (TELLES, p. 18)


Na análise do parágrafo, as descrições repletas de palavras no diminutivo, a forma juvenil, quase inocente ao se referir ao amante, M.N., estão entrelaçadas ao sentimento feminino de seu papel social, à crítica de que, tal qual as “abelhinhas louras”, só fazem “mel e amor”. Santos e Fernandes destacam que “O plano das linhas no nível mais superficial da obra permite o leitor captar apenas esses elementos” (p. 82).No entanto, o leitor ideal, aquele que é capaz de entender o que o autor de fato quer dizer entre as linhas, lembra-se de como a Lygia usa desses elementos de escrita suaves, amenizando, para representar os anseios sexuais de Lorena (Santos e Fernandes, p. 82-83), mais uma vez colocando assuntos que seriam considerados inadequados pelos censores.


Ainda outro aspecto que Telles utilizou para “camuflar” as suas opiniões expressas no texto, segundo Santos e Fernandes, é a existência de dois narratários: “um inserido no contexto contra ditadura militar”, ou seja, aquele que compreenderia as mensagens ocultas nas entrelinhas do romance, e “o censor, aquele que não deveria compreender a forte crítica ao momento histórico” (Santos e Fernandes, p. 81). Desta forma, se o leitor não se atentar de forma específica ao texto, é impossível inferir mais do que as palavras contam. A leitura sagaz, inquisitiva, questionadora é essencial para que se compreendam as mensagens de As Meninas.


Por fim, Santos e Fernandes concluem que “as críticas mais significativas aparecem após longas descrições e reflexões” (p. 95), em partes específicas, subentendidas.

Lygia Fagundes Telles adiciona ainda mais uma crítica, desta vez com os desfechos das três personagens — Ana Clara morre, como a figura da limpeza da marginalidade; Lorena, como parte da classe dominante durante a ditadura, não vê sua vida muito diferente de como era antes, “pois a repressão são chegou às casas com itens importados e talheres de prata”. Enfim, Lia representa o povo que se opunha aos militares: desaparecida, cabe ao leitor deduzir qual o seu fim, da mesma forma que famílias e amigos de pessoas que sumiram durante o período — está viva? Está morta? Foi exilada? (Santos e Fernandes, p. 95)


De forma inigualável, Telles fez ser publicado um texto poderia ter sido facilmente censurado sob a justificativa do que está expresso no Art. 1° do Decreto-Lei 1.077 de 26 de janeiro de 1970: “Não serão toleradas as publicações e exteriorizações contrárias à moral e aos bons costumes [...]”. Entretanto, sua genialidade ao utilizar os artifícios literários registrou os anos da ditadura ao mesmo tempo em que criticou o sistema através de personagens tão diferentes entre si.


Além de sua brilhante obra As Meninas, é importante destacar que Lygia Fagundes Telles foi a principal autora do chamado “Manifesto dos Intelectuais”, abaixo-assinado contra a censura que contou com mais de mil assinaturas.


Lygia Fagundes com Hélio Silva, Jefferson Ribeiro e Nélida Piñon após entregar manifesto contra censura: foto inédita | Foto de Orlando Brito/Agência O GLOBO


REFERÊNCIAS

  1. SANTOS, T. M. dos; FERNANDES, R. M. V. Por que a ditadura militar não censurou As Meninas? Leopoldianum, Santos – SP, ano 42, n° 116, 117 e 118, p. 78-97. 2016.

  2. SANTOS, J. P. R. A ditadura militar brasileira e os romances As meninas e As horas nuas, de Lygia Fagundes Telles. Letrônica, v. 13, n. 1, p. e35137, 8 abr. 2020.

  3. AS MENINAS (1974), DE LYGIA FAGUNDES TELLES. PROF. MARCELO NUNES. Leituras Obrigatórias | Prof. Marcelo Nunes. YouTube. 28 de jul.2020. 2h3 1min 32seg. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=68xmwnwlt-o> Acesso em 20 de abr. 2022.

  4. "MANIFESTO DOS INTELECTUAIS" PEDIU O FIM DA CENSURA EM JANEIRO DE 77. Folha de São Paulo, São Paulo, 3 de abr. 1994. Disponível em:<https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1994/4/03/brasil/27.html#:~:text=Lygia%20-%20A%20censura%20vinha%20exorbitando,reunir%2C%20de%20formar%20seus%20círculos> Acesso em 20 de abr. 2022.

  5. AI-5 CENSUROU CERCA DE 140 LIVROS NO BRASIL. Universidade Federal de Minas Gerais, 13 de dez. 2018. Disponível em: <https://ufmg.br/comunicacao/noticias/ai-5-censurou-cerca-de-140-livros-no-brasil> Acesso em: 20 de abr. 2022.

  6. BRASIL. Constituição (1967). Ato Institucional5, de 13 de dezembro de 1968. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/AIT/ait-05-68.htm?msclkid=127b03cebb2011ec8214daece16e44d4> Acesso em 20 de abr. 2022.

  7. BRASIL. Constituição (1967). Decreto-Lei n° 1.077, de 26 de janeiro de 1970. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/1965-1988/Del1077.htm?msclkid=0c2f897bbb2811eca3a3d4fa3d4db38b> Acesso em 20 de abr. 2022.

O AI-5. D’Araújo, M. C. de. Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea.Fundação Getúlio Vargas. Fatos e Imagens. Disponível em: <https://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/FatosImagens/AI5?msclkid=a637e11fbb1f11ec957a35a3b5d4ffce> Acesso em 20 de abr. 2022.


Escrito por Gabriella Braga, aluna de Letras





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