O que você sabe sobre genocídio indígena? Provavelmente, a grande maioria da população não terá uma resposta a essa pergunta. Contudo, infelizmente, o genocício e etnocídio indígena permeiam a história do Brasil e, o desconhecimento sobre, reforça os motivos por trás desse processo. Os dados do projeto CACI – Cartografia de Ataques Contra Indígenas evidenciou que no Mato Grosso do Sul, entre 2003 e 2014, um em cada dois casos de assassinatos de indígenas registrados no Brasil aconteceu no estado, concentrando 54,8% das mortes de indígenas no país[1]. Esse dado permite que façamos algumas suposições sobre o motivo por trás dessa mortandade, mas que podemos chegar a um ponto em comum: a luta é pela terra e seus recursos.
Figura 1 Trecho da Transamazônica em obras Fonte: Memorial da Democracia. Assim, proponho fazer um recorte temporal, entre 1970-1980, pontuando como o regime militar, com o milagre e a política desenvolvimentista da Amazônia, trataram da questão indígena. Os relatos nos permitem reconstruir e analisar como o governo à época enxergava os indígenas, mas também, como o projeto foi posto em prática. A pergunta é importante para que não caiamos em reducionismos históricos, ou apontar o dedo a culpados seletivos, como se tivesse só acontecido em um determinado período de tempo. Ela serve para nos fazer refletir sobre o nosso papel na história, de perpetuadores ou transformadores da nossa realidade.
Durante o regime militar, em nome do Plano de Integração Nacional (PIN), instituído pelo Decreto-Lei nº 1.106, de 16 de junho de 1970, indígenas foram perseguidos, expulsos de suas terras, mortos e decapitados, por serem considerados um estorno ao desenvolvimento nacional. O então presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), General Ismarth de Araújo Oliveira, personificava o pensamento da época, fazendo o seguinte pronunciamento “Minha tarefa será a de integrar o índio na sociedade nacional porque é impossível deter o processo de desenvolvimento do país com o argumento de que os índios deveriam ser protegidos e mantidos em seu estado puro”[2].
Vídeo 1 Trecho de vídeo da inauguração da Transamazônica. Fonte: Memorial da Democracia
Figura 2 Entrevista do General Ismarth ao jornal Opinião (RJ), em 1975. Fonte: Hemeroteca Digital/Fundação Biblioteca Nacional A fala do General Ismarth é um sintoma da violência continuada contra os povos originários, nas suas mais diversas formas. Ele havia assumido a direção da Funai em março de 1974 e, em uma entrevista ao jornal Opinião (RJ), no ano seguinte, reproduz falas que foram e ainda continuam sendo repetidas – colocando o índígena como um problema. Como quando o jornalista aborda sobre “o problema das terras”, e ele retruca que a demarcação da terra indígena seria “fazer um levantamento da área e ver a necessidade daquela comunidade indígena em termos de terra”[3]. Deixando nítido que os interesses econônimcos prevaleciam sobre o humano, qual a Funai, deveria zelar por esses povos.
Para entender o posicionamento do general, precisamos analisar o que foi o PIN. O plano foi implementado durante o governo do presidente-general Emílio Garrastazu Médici, que tinha por objetivo implementar obras de infra-estrutura econômica e social no Norte e no Nordeste do país, prevendo a ocupação de 2 milhões de km² na Amazônia. O plano estava estritamente vinculado a abertura da Transamazônica, que teve início em setembro de 1970 e atrelado a duas razões: de um lado, uma preocupação geopolítica com os “vazios territoriais e demográficos” e, de outro, o excesso de população pobre do Nordeste[4].
Figura 3 Propaganda da Sudam publicada na publicada na Edição Especial Amazônia da Revista Realidade de 1972. Fonte: O Eco/Reprodução/Acervo Ricardo Cardim Dessa forma, trabalhando em consonancia ao PIN, a Funai anunciou em 1973 a intenção de expedições de pacificação na parte noroeste da Bacia Amazonica. O general Bandeira de Mello, diretor da Fundação entre 1969-1974, firmou um convênio com a Superintendencia da Amazônia (SUDAM) para a “pacificação de 30 grupos indígenas arredios”, se tornando a facilitadora e executora para a construção das estradas e da colonização da região, sendo a responsável pela política de contato, atração e remoção dos indígenas das suas terras[5]. O interessante é que um relatório da própria Funai estimou que entre 20 a 50 mil indígenas, residindo em 270 aldeamentos, habitavam a região[6]. Indo de encontro ao discurso oficial, pois os números não negam: não havia um vazio territorial e demográfico, mas sim, interesses econômicos por trás da retórica.
Durante esse período, a Companhia de Pesquisa de Recursos Naturais (CPRM), fundada em 1969, desempenhou um papel de extrema relevância para a abertura e expansão da mineração na Amazônia. Entre julho de 1970 e março de 1975, a estatal mapeaou mais de 2 milhões de quilômetros quadrados do país e financiou muitos projetos de prospecção mineral. E, para acessar essas reservas, financiou a construção das rodovias Perimetral Norte e Oeste da Bacia Amazônica, essa última, a BR-174 ou rodovia Manaus-Boa Vista[7]. Além de que o PIN previa uma meta de assentar 100 mil famílias ao longo das estradas, nos mais de 2 milhões de quilometros quadrados de terras expropriadas, acarretando na remoção à força de muitos povos indígenas[8].
Figura 4 Pacificação no Igarapé Lontra (Parakanã). Foto: Yves Billon, 1971. Fonte: Povos Indígenas no Brasil - Socioambiental Corroborando com essa política, em dezembro de 1973 foi promulgado o Estatuto do Índio (Lei nº 6.001/1973). Dentre os seus artigos, dois chamam a atenção. O artigo 20 abarca a possibilidade de remoção de populações indígenas devido a segurança nacional, reliação de obras públicas, principlamente aquelas voltadas ao desenvolvimento nacional, como a min eração. E o artigo 43 estabelecu a “renda indígena”, legalizando a exploração de madeira e e outras riquezas das áreas indígenas. Apesar de ser destinada ao indígenas, esse dispositivo acabou se tornando 80% da renda da Funai, e promovendo o enriquecimento ilícito de seus funcionários.
A etnia Parakanã foi uma das que sofreu devido a construção da Transamazônica. Em novembro 1971, os trabalhadores da rodovia começam a invadir a reserva da etnia, os relatos falam sobre vilência sexual contra das mulheres Parakanã, cometida pelos trabalhadores da rodovia e agentes da Funai. O médico Antônio Medeiros visitou a aldeia Parakanã em 1971 e lá, descobriu que 35 indígenas e dois agentes da Funai tinham doenças venéreas, oito crianças da aldeia nasceram cegas e seis haviam morrido de desinteria. E três meses mais tarde, uma epidemia de gripe assolou a aldeia, que mesmo contando com uma equipe médica, a falta de medicamentos e suprimentos adequados, levou a óbito várias pessoas por blenorragia ou pneumonia. Casos como esse, levaram um dos mais dedicados sertanistas à época, Antônio Cotrim Soares a abandonar a Funai, em 1972. Ele denunciou em uma entrevista a revista Veja que os direitos dos indígenas estavam sendo sacrificados no Brasil, em prol de projetos rodoviários e de desenvolvimento[9].
Figura 5 Mapa da Terra Indígena Waimiri Atroari Fonte: BBC News/Brasil O genocídio dos Waimiri Atroari pela ditadura militar se insere nesse contexto, o povo Kinja, como se autodenominam, é um dos grupos mais documentados, pelos relatos horripilantes que sofreram e que, em relação ao número oficial de mortos, os que contam com números mais expressivos. Considerados como um empecilho ao desenvolvimento, a perseguição a eles se estendeu entre os anos 1960 e 1980, durante a construção de três grandes projetos dentro da terra indígena (TI): a abertura da BR-174, a Manaus-Boa Vista; a construção da hidrelétrica de Balbina; e a atuação de mineradoras e garimpeiros interessados em explorar as jazidas em seu território. Para se ter uma noção do tamanho da mortandade, mais de 80% da etnia Waimiri Atroari desapareceu. Em 1972, a Funai estimou a população dos Waimiri-Atroari em 3 mil. Contudo, durante a construção da hidrelétrica de Balbina, em 1987 a população deste mesmo povo foi estimada em apenas 420 indivíduos[10].
Essas são só duas etnias, em meio ao amplo levantamento feito pela Comissão Nacional da Verdade (CNV), com dados chocantes sobre o número da mortandade indígena nesse período. Durante o perído de investigação, pelo menos 8.350 indígenas foram mortos em massacres, tomada de terras, prisões, torturas, disseminação de doenças e uso de químicos, como pesticidas, em decorrência direta dos agentes governamentais ou da sua omissão. Contudo, é importante ressaltar que esse número pode ser exponencialmente muito maior, porque inclui apenas os casos estudados em relação aos quais foi possível fazer uma estimativa[11]. O mais impactante é o uso das instituições públicas para a perseguição dos povos originários. Por ocasião da CPI da Funai, em 1977, o relatório final demostrou que a Funai emitiu certidões negativas sem ter o conhecimento completo e infomações para afirmar que determinado território não era ocupado por indígenas. Como também, chegou a emitir essas certidões mesmo sabendo que determinado local apontava a ocupação de um ou mais poovos na região[12]. O que abriu caminho para matanças e erradicação de etnias inteiras.
Como dito, as instituições governamentais, que deveriam ampar os povos originários, foram e ainda são usadas a revelia de seus direitos. A exemplo é a continuidade do uso político da Funai, o julgamento do Marco Temporal, pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e a classificação da obra do linhão do Tucuruí, pelo Conselho de Defesa Nacional em fevereiro de 2019, como dentro do escopo da soberania e da integridade nacional, passando, literalmente, por cima dos indígenas. Por fim, é importante que a pesquisa sobre o genocídio indigena continue, pois quanto mais familiarizado com a história dos povos originários, mais podemos compreender a realidade da política indigenista do país. E, quem sabe, consigamos mudar a forma como os indígenas são tratados e representados, respeitando as suas condições de existência coletiva, livre e digna.
Referência bibliográfica
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[1] MEMORIAL DA DITADURA. Indígenas. Disponível em: <http://memoriasdaditadura.org.br/indigenas/>. Acesso em: 27 ago. 2021. [2] DAVIS, Shelton H. Vítimas do Milagre: o desenvolvimento e os índios do Brasil. Rio de Janeiro: Zahar: Rio de Janeiro, 1978. p, 118. [3] FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL. Opinião: jornal semanal. Edição 115. Rio de Janeiro: 1975. Quem vai ensinar o branco como lidar com o índio? Entrevista com o presidente da Fundação Nacional do Índio, general Ismarth de Araújo Oliveira. Disponível em: < http://memoria.bn.br/DocReader/Hotpage/HotpageBN.aspx?bib=123307&pagfis=2589&url=http://memoria.bn.br/docreader#>. Acesso em: 02 set. 2021 [4] ABREU, Alzira Alves de. Verbete Programa de Integração Nacional (PIN). In: ABREU, Alzira Alves de et al (coords.). Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro – Pós-1930. Rio de Janeiro: CPDOC, 2010. Disponível em: < http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/programa-de-integracao-nacional-pin>. Acesso em: 27 ago. 2021 [5] COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE. Relatório Volume II – Textos temáticos: texto 5. Disponível em: <http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/images/pdf/relatorio/volume_2_digital.pdf>. Acesso em: 03 set. 2021. p, 209. [6] DAVIS, Shelton H. Vítimas do Milagre: o desenvolvimento e os índios do Brasil. Rio de Janeiro: Zahar: Rio de Janeiro, 1978. P, 122. [7] DAVIS, Shelton H. Vítimas do Milagre: o desenvolvimento e os índios do Brasil. Rio de Janeiro: Zahar: Rio de Janeiro, 1978. pp, 120-121. [8] COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE. Relatório Volume II – Textos temáticos: texto 5. Disponível em: <http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/images/pdf/relatorio/volume_2_digital.pdf>. Acesso em: 03 set. 2021. pp, 209-2010. [9] DAVIS, Shelton H. Vítimas do Milagre: o desenvolvimento e os índios do Brasil. Rio de Janeiro: Zahar: Rio de Janeiro, 1978. pp, 94-95. [10] COMITÊ DA VERDADE, MEMÓRIA E JUSTIÇA DO AMAZONAS. 2012. 1º Relatório do Comitê Estadual da Verdade: O Genocídio do Povo Waimiri-Atroari. Comitê da Verdade, Memória e Justiça do Amazonas. Manaus, Amazonas. Disponível em: http://www.dhnet.org.br/verdade/resistencia/a_pdf/r_cv_am_waimiri_atroari.pdf. Acesso em: 04 set. 2021. p, 5. [11] COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE. Relatório Volume II – Textos temáticos: texto 5. Disponível em: <http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/images/pdf/relatorio/volume_2_digital.pdf>. Acesso em: 03 set. 2021. p, 205. [12] COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE. Relatório Volume II – Textos temáticos: texto 5. Disponível em: <http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/images/pdf/relatorio/volume_2_digital.pdf>. Acesso em: 03 set. 2021. pp, 210-211 e 221.
Edna Beatriz Batista Pereira, estudante de História
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