Termos como revolução e golpe de Estado, presentes em nosso cotidiano, parecem ser palavras com significados claros, e questionar sobre sua conceitualização e contextualização parece, a priori, um movimento desnecessário e redundante, mas isso promove um apagamento sobre as possibilidades da sua utilização ao longo da história. É importante trazer luz sobre as transformações da definição das palavras para, primeiramente, entendermos o contexto de determinados eventos e sua aplicação para o período. Reiterar sobre seus significados é trazer argumentos contra o relativismo histórico, pois as palavras revolução e golpe de Estado, por exemplo, são termos estruturantes para caracterizar a origem de determinados governos.
E é dessa forma que podemos entender que não basta dizer que a ditadura militar foi um golpe, já que, assim como eventos históricos possuem contextos específicos, o surgimento da palavra golpe também tem e é preciso reiterar seu processo de encadeamento de ideias para estruturar o que hoje entendemos ser um golpe de Estado. Fato é que, conforme os séculos passam, a semântica de qualquer palavra pode se transformar e se não levarmos isso em conta podemos cair em alguns problemas como anacronismo histórico ou uma errônea conceitualização e utilização delas.
Para a contemporaneidade, a revolução é uma transformação profunda das hierarquias sociais e políticas de uma nação, tendo em seus moldes o envolvimento de largos setores da sociedade. A saber, grupos populares que, normalmente, buscam por uma libertação política e transformações na estrutura do Estado. Já o golpe de Estado é entendido como o extremo oposto, sendo uma ruptura da ordem jurídica e política, liderada por uma elite política, econômica e militar. E quando conseguem o domínio do Estado buscam manter o poder principalmente pela repressão, utilizando as mídias tradicionais como forma de promover uma narrativa favorável ao seu governo.
Mas como já foi dito anteriormente, esses termos não adquirem tais conceitos desde sua origem. Uma revolução, por exemplo, é tida na antiguidade como um conceito cosmológico, para caracterizar os eventos ciclos dos astros. Dessa forma, quando começou a ser usada para assuntos dos homens, assumiu a ideia de uma recorrência de um determinado poder político (ARENDT, P.72) É por isso que a revolução parece ser um termo muito mais conservador do que entendemos atualmente. O século XVII foi o momento em que a revolução começou a tomar ainda mais forma nos textos políticos, sendo utilizada para relatar um movimento de retorno da monarquia na Inglaterra, durante a Revolução Gloriosa. Consequentemente, seria um termo para caracterizar a restauração do poder monárquico. (ARENDT, P.73)
Isso explica de forma clara como o verbete revolução, uma palavra que já traz a ideia de retorno, chega ao mundo dos humanos. Seu início no mundo político seria um marco para a ideia de ciclos e foi muito utilizada por defensores da implementação de antigos poderes, como a monarquia. E é com a Revolução Francesa que o termo adquire a ideia que temos atualmente, foi a partir do curso da própria revolta que o termo recebeu conotações e implicações atuais, numa jogada política da narrativa da nação e tentativa de construir uma História para o país. E nessa realidade revolução simbolizaria uma novidade intrinsecamente ligada à liberdade. (ARENDT, p.63)
O entendimento de golpe de Estado também foi sendo alterado ao longo da história, o termo surge com o escritor político Gabriel Naudè, na obra ``Considérations politiques sur les coups d'Etat'', do século XVII. Ele definiu golpe de Estado como ações extraordinárias que os príncipes se veem obrigados a executar em situações difíceis, contra o direito comum, colocando de lado o interesse particular em benefício do bem público. (NAUDÉ, apud SILVA, 2018, P.132)
O conceito vai se popularizar com o crescimento de teorias políticas, principalmente durante a modernidade, e a quebra de paradigmas ocorridos entre a transição da modernidade e contemporaneidade, com a existência do iluminismo. No século XX, o historiador Donald Goodspeed aponta que o golpe de Estado é, na verdade, uma tentativa de mudança de política pelo ataque súbito ao governo, em que um grupo reduzido de pessoas se apodera do Estado. (GOODSPEED, apud, SILVA, 2018, P.134)
É com o cientista político Edward Luttwak que vemos de forma mais nítida a ideia de golpe de Estado da contemporaneidade. O teórico destacou que embora o golpe de estado possa ter semelhanças em processos políticos ocorridos na antiguidade, é um evento que só pode se consolidar no Estado moderno, com o surgimento da burocracia e das forças armadas permanentes. Para Luttwak, o golpe opera em uma área fora do governo, mas dentro do Estado, devido ao funcionalismo e burocracia política a forças armadas, por exemplo, podem se forçar para dentro dos aparatos governamentais. (LUTTWAK, apud, SILVA, 2018, p. 135). O foco central de Luttwak é que “um golpe consiste na infiltração em um segmento pequeno, mas crítico do aparelho estatal, utilizando-o depois para tirar do governo o controle sobre a parte restante” (LUTTWAK, 1991, p.30).
É perceptível então, que falar de golpe de Estado está intimamente ligado a uma interrupção forçada do processo institucional, que pode utilizar ou não a violência. O processo golpista, por sua vez, pode ser apoiado pelos setores militares, transformando o regime político. É um movimento que exige a mobilização de forças políticas e de discursos difundidos pelos órgãos de imprensa. Um processo que geralmente produz um recrudescimento da repressão, seja pela violência explícita, seja pela mudança em aspectos da legislação. (SILVA, 2018, p.135) Além disso, um golpe de Estado gera processos ditatoriais, demarcados pela construção do ódio a um inimigo em comum, utilizando assim da mídia e narrativas enviesadas para produzir uma estabilidade que teria como foco a prevenção dos ataques oposicionistas. Os golpes de estado se legitimam e se constroem em uma imagem nacional fortalecida.
Dessa forma, tendo em vista o contexto teórico das palavras revolução e golpe de Estado, podemos traçar um paralelo com a ditadura e além disso refletir como tais palavras foram importantes pautas para as teorias históricas políticas, muitas vezes até mesmo utilizadas como a construção da imagem de uma nação. Portanto, falar que a ditadura de 1964 é fruto de um golpe é reafirmar que foi uma reformulação política radical promovida por poucos. Além disso, deve-se impossibilitar a utilização da revolução para caracterizá-la, pois este termo atribui uma ideia de liberdade que a sociedade desse período esteve longe de vivenciar.
A ditadura militar tomou conta do comando do Estado brasileiro por uma minoria militar, fortemente armada, com um pretexto de invasão comunista. Utilizou da mídia tradicional para propagar uma narrativa favorável à sua tomada de poder e buscou apoio das classes políticas e sociais mais altas, para lidar com possíveis comunistas. Toda essa realidade está inserida na ideia de golpe e por isso precisa ser reafirmada. É importante não perder de vista que uma revolução, além de ter uma grande participação popular, busca antes de tudo um governo que institui a liberdade e os direitos humanos igualitários, o que factualmente já foi comprovado que a ditadura militar brasileira não propagou.
Referências bibliográficas
ARENDT, H. Cap. 1: O significado de revolução. Da revolução. Brasília: Editora UnB, 1988 [1963], p. 17-46.
GONÇALVES, Letícia. Golpe ou revolução?: momentos de crise do Brasil república: uma análise sobre a “Era Vargas” (1930-1945). 2021. 49 f. Monografia (Graduação em História - Bacharelado) - Instituto de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Federal de Ouro Preto, Mariana, 2021.
GOODSPEED, Donald. Conspiração e golpes de Estado . Rio de Janeiro: Saga, 1966.
LUTTWAK, Edward. Golpe de Estado: um manual prático. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.
SILVA, M. G. da . GOLPE DE ESTADO: HISTÓRIA E USOS DE UM CONCEITO. Boletim de Conjuntura (BOCA), 2020. Disponível em: <https://revista.ioles.com.br/boca/index.php/revista/article/view/26>. Acesso em: 12 jul. 2022.
VILAS, Carlos. 1964: um Golpe ou uma Revolução?. Jornal do Campus USP, 2001.
Texto escrito por Nicolle Guimarães.
Commentaires