No início do regime ditatorial, os militares operavam sob uma narrativa baseada na restauração da ordem e promoção do crescimento do país. Havia uma forte resistência, por exemplo, às reformas de base - nos setores da educação, tributário, agrário, etc - propostas por Jango. A crítica e a atribuição do status de “comunismo” a esse tipo de mudança no sistema político, econômico e social no país foi, inclusive, um dos principais argumentos utilizados para legitimar o golpe militar.
Dentro desse contexto, poucos meses após a instauração do regime ditatorial, Castello Branco sancionou a Lei n. 4.504/1964, conhecida como Estatuto da Terra, que trazia dois eixos de atuação bastante alinhados com o discurso da época. O primeiro deles era a promoção da política de reforma agrária e o segundo, o desenvolvimento de um forte setor produtivo no campo.
No primeiro eixo, o Estatuto resgata diversos termos associados à justiça da terra, como “melhor distribuição da terra”, “princípios de justiça social”, “oportunidade de acesso à propriedade”, “função social”, “justa remuneração e o acesso do trabalhador aos benefícios do aumento da produtividade e ao bem-estar coletivo” (BRASIL, 1964). Aqui, tem-se a ideia de que a terra deve cumprir sua função social, atendendo os interesses do produtor e do trabalhador do campo, de forma equânime.
Já no segundo eixo, temos uma indiscutível busca pela maximização da produção e do lucro a partir dos empreendimentos no campo. Pode-se dizer que esse eixo foi privilegiado pela ditadura, ao definir as prioridades dentro da política agrária. Na prática,
no Estatuto da Terra não havia nenhuma proposta de "reforma agrária distributivista" que beneficiasse os pequenos agricultores. Por isso, a reforma agrária pôde ser reduzida às medidas de assentamento e colonização, por um lado; e, por outro, a concentração fundiária, antes de ser reduzida, reproduziu-se, de forma ainda mais grave, nas áreas novas. (JONES, 1997)
Desse modo, é evidente que os ideais de acesso à terra e dignidade do trabalho no campo ficaram praticamente só no papel. O governo militar buscava, na verdade, atender ao modelo desenvolvimentista de mercado, dando fim aos minifúndios e latifúndios improdutivos em favor das chamadas empresas rurais. Essas empresas consistem em “empreendimentos [...] que exploram econômica e racionalmente imóvel rural, dentro de condição de rendimento econômico” (BRASIL, 1964). A tentativa era de voltar toda a estrutura da produção rural para a chamada “colonização”, ou seja, para a exploração da terra com fins econômicos.
Nesse sentido, somado aos conflitos entre latifundiários e lideranças camponesas, passou a haver a repressão aos trabalhadores do campo por parte do governo ditatorial:
Conforme documento da Comissão Pastoral da Terra (CPT), entre 1962 e 1989, nada menos do que 1.566 trabalhadores rurais foram assassinados. Apesar de esses assassinatos quase sempre terem sido a mando de grandes proprietários, não se pode dissociá-los do clima geral de repressão que se abateu sobre os trabalhadores em nome da “segurança nacional” (TRABALHADORES, 2022).
Quase todos os dirigentes das Ligas foram presos ou mortos. No dia 21 de abril de 1964, o Diário de Pernambuco noticiava que a polícia havia encontrado o corpo do presidente das Ligas Camponesas de Vitória de Santo Antão, Albertino José da Silva, em adiantado estado de decomposição. Nessas execuções sumárias, ficavam evidentes os compromissos entre o latifúndio e o poder militar que comandava o país (CARNEIRO, A.; CIOCCARI, M., 2010).
Não faltam exemplos de lideranças camponesas mortas, desaparecidas ou torturadas. Foi o caso de Elizabeth Teixeira, Lindolfo Silva, Francisco Julião e inúmeros outros corajosos pivôs da resistência. O tema já foi objeto de uma pesquisa/dossiê do então Ministério do Desenvolvimento Agrário, a partir da Secretaria de Direitos Humanos (SDH) em 2010, que buscou contar a história dos cidadãos perseguidos pela ditadura por reivindicarem pautas relacionadas ao campesinato.
Fonte: CONTAG. “Ação policial em manifestação de trabalhadores rurais” (CARNEIRO, A.; CIOCCARI, M., 2010)
A partir da década de 70, houve um esforço especialmente concentrado na reorganização da luta campesina-sindical. Um dos momentos mais marcantes desse período foi a Guerrilha do Araguaia, que passou a ser conhecida e atacada pelo governo em 1972. Os locais “se constituíam de pequenos comerciantes, prestadores de serviços e camponeses, grande parte destes migrantes, predominantemente oriundos da região nordeste, que viviam nos povoados, nas vilas, na zona rural”, notadamente sem o devido amparo estatal (COSTA, 2020). Ainda,
Esses moradores que migraram antes da chegada dos guerrilheiros, se sentiram motivados a viver naquela região ante a imensidão de terras devolutas, e passaram a explorar a terra na realização do plantio de produtos agrícolas para a subsistência. Essa população recém instalada, em sua maioria camponeses, vivia de maneira muito simples (COSTA, 2020).
Fonte: (CARNEIRO, A. CIOCCARI, M., 2010) - “Infância sob lonas: crianças dos sem-terra crescem sob o signo da precariedade.”
Apesar de estarem em menor número e menor capacidade operacional em relação aos militares, os guerrilheiros resistiram por um tempo considerável após as investidas do governo. A guerrilha sobreviveu até o ano de 1975, quando a repressão militar acabou sufocando o movimento. Importante dizer que muitos guerrilheiros não foram encontrados e são dados, até hoje, como desaparecidos políticos (GRUPO TORTURA NUNCA MAIS RJ E PE, 1995).
Outro acontecimento que impactou profundamente os caminhos da luta dos trabalhadores rurais e, quiçá, do Brasil, foi a ocupação de um latifúndio inutilizado no Rio Grande do Sul, em 1979 e a subsequente criação de outros assentamentos em locais próximos dali (MOVIMENTO DOS TRABALHADORES SEM TERRA, 2022). Apesar dos esforços militares para conter o ato, os trabalhadores lá resistiram por anos e deram início ao embrião do que hoje se conhece como Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (TRABALHADORES, 2022).
Fonte: Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)
Todos esses acontecimentos são demonstrativos da força da luta dos trabalhadores rurais, bem como de sua importância na resistência à ditadura. Esse tema foi central não apenas durante a ditadura, mas também antes - já que as reformas de base foram usadas em parte como justificativa para o golpe - e depois dela.
Ainda hoje, as famílias de diversas personalidades do campesinato seguem sem respostas sobre o paradeiro dos mortos e desaparecidos:
Passados mais de quinze anos da promulgação da Lei da Anistia, o número de mortos e desaparecidos políticos atinge a soma de 360. Este número não reflete a totalidade dos mortos ou desaparecidos, visto que sempre aumenta, quanto mais se abrem as possibilidades de pesquisa. Até o momento, tivemos acesso a poucos e inexpressivos documentos oficiais referentes às mortes na zona rural (GRUPO TORTURA NUNCA MAIS RJ E PE, 1995).
Entre grupos revolucionários armados e associações sindicais em prol do campesinato, o fato é que os movimentos sociais do campo foram fundamentais na luta pela democracia. Muitos desses movimentos lançaram bases teóricas e práticas para lutas que se projetam até os dias de hoje. A questão da reforma agrária, que perpassa o desmonte dos latifúndios e o incentivo à agricultura familiar, como um dia prometeu o Estatuto da Terra, segue sendo urgente e indispensável para a construção de uma política agrária verdadeiramente democrática.
BIBLIOGRAFIA
BRASIL. Lei 4.504, de 30 de novembro de 1964. Dispõe sobre o Estatuto da Terra. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L4504.htm >. Acesso em: 26 mar. 2022.
CARNEIRO, A.; CIOCCARI, M. Retrato da repressão política no campo: Brasil 1962-1985: camponeses torturados, mortos e desaparecidos. 1a ed. Brasília: NEAD, Secretaria de Direitos Humanos, Ministério do Desenvolvimento Agrário, Governo Federal, 2010. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/tematica/livros/diversos/campo.pdf. Acesso em: 28 mar. 2022.
COSTA, Sônia Maria Alves da. Guerrilha do Araguaia: população local na luta e resistência ao regime repressivo no brasil. 2020. 262 f. Tese (Doutorado) - Curso de Direito, Faculdade de Direito, Universidade de Brasília, Brasília, 2020. Disponível em: https://repositorio.unb.br/handle/10482/38954. Acesso em: 28 mar. 2022.
GRUPO TORTURA NUNCA MAIS RJ E PE. Governo do Estado de Pernambuco. Dossiê dos mortos e desaparecidos políticos a partir de 1964. Recife: Companhia Editora de Pernambuco, 1995. 444 p. Prefácio de Dom Paulo Evaristo Arns. Apresentação de Miguel Arraes de Alencar.. Disponível em: http://www.dhnet.org.br/dados/dossiers/dh/br/dossie64/br/dossmdp.pdf . Acesso em: 29 mar. 2022.
JONES, Alberto da Silva. O DIAGNÓSTICO MILITAR DA QUESTÃO AGRÁRIA: o Estatuto da Terra. Revista de Economia e Sociologia Rural - Vol 35 -Nº 4, [S. L.], v. 35, n. 4, p. 9-40, dez. 1997. Disponível em: https://www.revistasober.org/journal/resr/article/5da7c4650e8825a730ba68e1. Acesso em: 18 mar. 2022.
MOVIMENTO DOS TRABALHADORES SEM TERRA. O MST: nossa história. NOSSA HISTÓRIA. Disponível em: https://mst.org.br/nossa-historia/70-82/. Acesso em: 28 mar. 2022.
TRABALHADORES rurais. Memórias da Ditadura, 2022. Disponível em: <https://memoriasdaditadura.org.br/trabalhadores-rurais/>. Acesso em: 26 mar. 2022.
Escrito por Daniela Rocha, estudante de História.
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